sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Discernimento eleitoral

Dom Walmor Oliveira de Azevedo

Discernimento eleitoral

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo de Belo Horizonte (MG)
A cidadania brasileira está desafiada, mais uma vez, a viver o necessário discernimento eleitoral, para fazer escolhas qualificadas no próximo domingo. Esse exercício é de fundamental importância, pois serão definidos nomes a ocuparem os cargos eletivos, todos estratégicos para a condução do país. Não é fácil esse processo de discernimento. A primeira e importante consideração, necessariamente, é sobre o perfil e a vida de cada candidato. É difícil encontrar um nome que reúna todos os itens apontados como indispensáveis para governar e representar bem o poder que pertence ao povo; e que a ele deve ser devolvido na forma de serviços. Os eleitos precisam ser pessoas capazes de reconhecer e atender aos anseios da população, particularmente dos mais pobres. Diante dos critérios a serem observados, constata-se que processo de qualificada escolha de candidatos é laborioso, mas isso não pode produzir desânimo.

Nas eleições, o povo tem a chance de compor um time que, embora possa não alcançar o patamar da seleção sonhada, seja capaz de produzir avanços na superação urgente de graves problemas, como as desigualdades sociais. Para isso, é preciso contrabalançar elementos - trajetória, consistências pessoais, força de liderança, lastro de representatividade. Essas qualidades, e muitas outras, precisam ser observadas e identificadas nas pessoas que se submetem ao sufrágio das urnas. Eleger políticos com perfil marcado pela articulação dessas características é contribuir para a composição de um quadro, nos governos e parlamentos, com mais lucidez no trato, defesa e promoção de tudo que é público.
Vale ressaltar que mediocridades são um veneno terrível que enterra definitivamente as aspirações do povo. Elas corroem instâncias de grande importância política e social, transformando-as em palcos de interesses partidários e de grupos. A partir da presença de pessoas desqualificadas, governos e parlamentos tornam-se marcados por uma visão míope das urgências da sociedade, agravada pela incapacidade de analisar, escolher e agir com rapidez. Não se pode permitir que um mandato de quatro anos torne-se tempo para o eleito “ciscar de cá prá lá e de lá prá cá”, obrigando o gigante que é esta nação a permanecer adormecido. Bom seria contar com uma série de nomes cuja dificuldade de escolha residisse na excelência dos muitos perfis, todos sem senões, com os elementos adequados da vida pessoal, social e política. Infelizmente não é assim.
Não se crê que o ambiente político partidário vigente consiga produzir essas excelências cidadãs. Ao contrário, talvez muitas vezes seduza em direção inadequada aqueles que poderiam construir uma trajetória brilhante no mundo da política. Mas a sabedoria popular ensina que “não adianta chorar o leite derramado”. Providências significativas e transformadoras são sonhadas e buscadas, entre elas a urgência da reforma política, que deve contracenar com um processo educativo e de configuração social capaz de revitalizar a cidadania brasileira. Agora, na lista dos nomes a serem escolhidos, com uma isenção que localiza o discernimento no território da lucidez, é preciso escolher quem pode representar melhor o povo, sem se sucumbir ao “peso pesado”, e até perverso, do mundo da política.
Há quem preferiria que se apontassem os nomes, à moda do chamado “voto de cabresto”, algo totalmente obsoleto e prejudicial que não pode mais ser o vetor das eleições. Seu contraponto é o qualificado processo de discernimento. Ainda é tempo para vivê-lo, confrontando perfis, nomes, histórias e, não menos importante, o fôlego de candidatos para dar conta de sua missão. A meta dos eleitos não pode se resumir ao sucesso nas urnas. Definidos como representantes da população nos governos e parlamentos, eles precisam permanentemente buscar o diálogo, a proximidade com o povo, disposição para trabalhar com transparência e almejar sempre as conquistas sociais.
Não é possível, a modo de cartilha, listar todos os critérios que sirvam de parâmetro para a definição dos perfis ideais de candidatos. Neste período de preparação que precede a ida às urnas, é cidadania bem vivida guiar-se também por um razoável tempo de silêncio e confrontos pessoais para chegar ao nome. Discernimento eleitoral não é simples emoção, simpatia ou antipatia, cor partidária, mero conhecimento ou amizade pessoal. O atual momento exige muito mais esforço de cada pessoa. Todos precisam partilhar a certeza de que a situação social, o desenvolvimento integral e o tratamento lúcido da sociedade civil estão no que é poder de cada cidadão: o seu discernimento eleitoral.

Fé e política para além do fundamentalismo

Fé e política para além do fundamentalismo 

"Política é uma das formas mais altas de amor social", escreve Leonardo Boff, teólogo e escritor.

Estamos em tempo de eleições. Muitos setores das várias Igrejas, também da católica, se mobilizam ao redor de projetos para o país e de candidatos a vários cargos. É o momento de esclarecermos um pouco como se dá a relação entre fé e política.
Antes de mais nada há que se distinguir uma política escrita com P maiúsculo e outra com p minúsculo. Ou então a política social (P) e a política partidária (p).
A política social (P) diz respeito ao bem comum da sociedade; assim por exemplo, a organização da saúde, a rede escolar, os transportes, os salários tem a ver com política social. Lutar para conseguir um posto de saúde no bairro, se unir para trazer a linha de ônibus até no alto do morro é fazer política social.
Essa política significa a busca comum do bem comum. Nesse nível todos os cidadãos e todos os cristãos católicos ou evangélicos podem e devem participar.
A política partidária (p) representa a luta pelo poder de estado, para conquistar o governo municipal, estadual e federal. Os partidos políticos existem em função de se chegar ao poder, seja para mudá-lo (processo libertador), seja para exercê-lo assim como se encontra constituído (governar o estado que existe). O partido, como a palavra já o diz, é parte e parcela da sociedade não toda sociedade. Cada partido tem por trás interesses de grupos ou de classes que elaboram um projeto para toda a sociedade. Se chegarem ao poder de estado (governo) vão comandar as políticas públicas conforme o seu programa e sua visão partidária dos problemas.
Com referência à política partidária, é importante considerar os seguintes pontos: ver qual é o programa do partido; como o povo entra neste programa: se foi discutido nas bases; se atende aos reclamos históricos do povo; se prevê a participação do povo, mediante seus movimentos e organismos, na sua concepção, implementação e controle; quem são os candidatos que representam o programa: que biografia têm, se estão na lista da ficha suja, se sempre mantiveram uma ligação orgânica com as bases, se são verdadeiramente aliados e representantes das causas da justiça e da mudança social necessária ou se querem manter as relações sociais assim como são, com as contradições e até injustiças que encerram.
Esse último modo de poder político foi exercido historicamente por nossas elites a fim de se beneficiar dele, esquecendo o sujeito de todo o poder que é o povo.
Como entra a fé nisso tudo?
A fé diretamente tem a ver com Deus e seu desígnio sobre a humanidade. Mas ela está dentro da sociedade e é uma das criadoras de opinião e de decisão. Ela funciona como uma bicicleta; possui duas rodas mediante as quais se torna efetiva na sociedade: a roda da religião e a roda da política.
A roda da religião se concretiza pela oração, pelas celebrações, pelas pregações e pela leitura das Escrituras.
Pela roda da política a fé se expressa pela prática da justiça, da solidariedade, da denúncia da corrupção. Como se vê, política aqui é sinônimo de ética. Temos que aprender a nos equilibrar em cima das duas rodas para poder andar corretamente.
A Bíblia considera a roda da política como ética mais importante que a roda da religião como culto. Sem a ética, a fé fica vazia e inoperante. São as práticas e não as prédicas que contam para Deus. Melhor que proclamar "Senhor, Senhor” é fazer a vontade do Pai que é amor, misericórdia, justiça, coisas todas práticas, portanto, éticas.
Concretamente, fé e política se encontram juntas na vida das pessoas. A fé inclui a política, quer dizer, um cristão pelo fato de ser cristão, deve se empenhar pela justiça e pelo bem-estar social; também deve optar por programas e pessoas que se aproximem o mais possível àquilo que entendeu ser o projeto de Jesus e de Deus na história. Foi o que o Papa Francisco ressaltou quando esteve no Brasil.
Mas a fé transcende a política, porque a fé se refere também à vida eterna, à ressureição da carne, à transformação do universo, coisa que nenhuma política social e nenhum partido ou estado podem prometer.
A passagem da fé à política partidária não é direta. Quer dizer, da Bíblia não se deduz diretamente o apoio a um determinado partido e o dever de votar numa pessoa, nem quanto deve ser o salário mínimo. A Bíblia não oferece soluções, mas inspirações para que se possa escolher bem um partido e criar um salário digno. Para um cristão na linha do que o Papa Francisco vem insistindo a política deve ser
- libertadora: não basta reformar a sociedade que está aí; importa um outro modelo de sociedade que permita mais inclusão mediante a participação, a justiça social.
- libertadora a partir das maiorias pobres e excluídas: deve começar bem em baixo, pois assim não deixa ninguém de fora; se começar pelos assalariados ou pela burguesia, deixa de fora, de saída, quase metade da população excluída.
- uma política que usa métodos libertadores, quer dizer, que use processos participativos do povo, de baixo para cima e de dentro para fora; essa política pretende mais que uma democracia representativa/delegatícia mas uma democracia participativa pela qual o povo com suas organizações ajuda a discutir, a decidir e a resolver as questões sociais. Esse foi o grande reclamo das manifestações de junho de 2013 e que se exige fortemente agora.
- uma democracia ecológico-social que respeite os direitos da Mãe Terra, dos ecosistemas, dos animais e dos seres da criação com os quais mantemos relações de interdependência.